25.8.09

Desassossegos serenos

Há muito tempo atrás elegi o "Livro do Desassossego", do Fernando Pessoa, o meu livro de cabeceira. É realmente um tanto desconcertante você elencar essa quantidade de sentimentos e vontades como preferidos. Precisei de muita coragem para ver o quanto me lambuzo no caos.
Mas, ao mesmo tempo, é bastante nobre e completamente compreensível que eu me identifique com as palavras do escritor português. Quem mais para falar da dor e do amor? Quem mais para dizer, em língua tão rica, o que nos atravessa? Quem mais para, no fim de uma frase, acordar qualquer estômago, qualquer gente?
Acontece que hoje me deparei com mais um desassossego. A mesma língua portuguesa, a mesma metrópole, o mesmo fado. Outra percepção, porém, do que seria nosso limite. Limite que se transforma em além. Pelo menos assim sinto. Mas sou suspeita. É como se minha inquietude fosse minha casa. E longe disso, em paz, não saberia caminhar.
Não sei se acaso ou destino. Mas penso que em português sabemos mais de nós. Essa saudade de ser que só nossa língua sabe dizer. Essa escrita que serve de varanda para nós mesmos. Como se nos avistássemos de fora. E compreendêssemos, sossegados, as borbulhas da alma.
E Saramago, assim, me fez carinho sem saber.
Deixo aqui minha descoberta do dia, de um livro de poemas do autor que, não coincidentemente, chama-se "Provavelmente Alegria":


Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago

20.8.09

Rosas


"O correr da vida embrulha tudo.

A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem."


Guimarães Rosa

16.8.09

Hai Kai


Poesia

Tudo que eu quis ser

E não fui

Um dia

11.8.09

Minha tarde com Leminski

se

nem

for

terra

se

trans

for

mar


Paulo Leminski

Bonança

Delícia aquele sol bem miúdo saindo por trás da nuvem

Depois que tudo era cheio cheio cheio

E vazou

10.8.09

Carta para um amigo desalmado

Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 2009.

Meu querido amigo,

Eu queria ter palavras doces pra te dar. Potes de carinho pra te despejar todas as vezes que te vejo.
Mas tenho raiva e sempre um gosto amargo que dura mais tempo do que gostaria quando te comportas assim.
Queria te alcançar e te contar histórias de como vamos ficar bem velhos, ouvindo aqueles shows de rock com nossos outros amigos velhos.
Mas hoje tenho aqui essa velha conta a acertar, essa velha mágoa pra deixar na mesa do bar.
Queria gargalhar até de manhã e te contar dos ofícios, das neuras, das coisas todas que quase sempre transbordam das nossas conversas.
Mas já disse: ando farta desse inábil companheiro que me deixa sempre na beira do rio, sem margem que dê pé.
Adoraria ser a amiga a te elogiar aos ventos. A te propagandear por aí, "esse é dos meus".
Mas insisto: hoje não. Hoje te quero quase morto, não fosse minha extrema habilidade para a covardia.

Espero que você saiba que essas palavras são só pra te perdoar. Que o que eu queria mesmo era festa e champagne.
Espero que você nem as leia. Que te passem, que te distraias e não venhas por aqui, nessas vizinhanças tão inóspitas.
Espero que nunca chegue até você essa minha incapacidade de te perceber. Essa minha incapacidade de te amar inteiro, porque não sei de ti. Te queria como vejo, como creio. E você é tão duro nessa qualidade de ser você. Te garantes tanto e nos perdemos.
Mas tenho fé que essas palavras não chegam a ti. Guardo-as aqui comigo, nessa casa que é minha e transparente.

Mas se vier, não se espante. Entre, sinta-se à vontade.
Ainda sou a mesma que te acolhe há tanto tempo.
Tire os sapatos, pise com cuidado nesse chão de palavrinhas indomadas.
Dê um sorriso, cuide de mim. Me deixe chorar, me faça rir.
Vá embora, mas, antes, fique um pouco.
Quem sabe assim a gente não apaga da minha carne esse talho com teu nome?

No mais, esqueça essa carta.
Que a gente só sofra o suficiente. Que a gente saiba curar esses anos de história mal contada.
E gargalhar no nosso final de livro tão bonito.

Eu te amo, viu?

Mas hoje não.

9.8.09

Enchente

Essas águas que me formam

De onde elas vêm?

Em que maremoto extravagante desaguam?

Em que lago me largam despida?

Eu, tão íntima de meus líquidos, esqueço sempre de não pisar meu chão escorregadio.

Antiderrapante nenhum dá jeito na minha correnteza.

7.8.09

Limite

Além de mim não posso ser ninguém.

Trágico, não?

5.8.09

Agosto

Pra Fabi

Uma noite gelada em Botafogo e a gente pelas ruas desafiando o frio.
É assim mesmo que te vejo: com uma mochila de coragem a teus pés.
É só carregarmos juntas esse peso morno. Transformando o tédio em melodia.
Não quero fazer poesia pra você, não, que não sou capaz. Quero te dizer da vida e de tudo que vejo pra frente.

Quero as cervejas e aquelas horas do dia no sofá, maldizendo o mundo com tanto amor.
Quero desacreditar e lembrar. Quero cinema americano numa noite de domingo.
Quero te fotografar estirada numa grama verde, de biquíni amarelo.
Quero chocolate de aniversário e viagens pra fora, nossos planos. Quero pracinha e quero caos. Quero "John, I'm only dancing".

Não sei bem das respostas, sabe? Acho que elas não existem muito, são tipo fadas.
Prefiro ter essa idéia mistificada de que podemos ter a opção de saber.
Mas no fundo, você sabe, eu não acredito nisso.
Acho que coragem mesmo, pra valer, é olhar assim, no olho da vida, e responder: eu não sei.

Mas, em todo caso, sempre teremos essas noites geladas em Botafogo. E a gente pelas ruas desafiando o frio.

3.8.09

Manhã


Ela abriu os olhos devagar. O corpo doía, a cabeça pesava, o dia gritava.
Ainda tinha alguns minutos para se esticar e conseguir entender aquele acordar.
Ao seu lado o corpo dele dormia pesado, entregue. Era como se ela não estivesse ali e os sonhos o tivessem tomado por inteiro.
Ela olhava aquele corpo. Era estranho e íntimo. Suado e forte.
Até o olhar que ela lançava sobre ele era cuidadoso. Como se, olhando, ela fosse capaz de acordá-lo sem susto. Sem medo. Sem dor.
Colocou sua mão leve sobre suas costas largas. Ele dormia quente. Respirava pesado. Mas parecia sentir aquela mão pousada na curva da sua coluna. Uma mão só, que ficou ali, parada, durante muito tempo. Esperava por qualquer sinal de um abrir de olhos. Qualquer sinal de movimento. A mão parada não sentia nada além daquele sobe e desce de quem dorme profundamente. Ela sorria. Por quanto tempo esteve dormindo? Há quantos dias ele estava ali?
Uma luz pequena entrava pela janela. A mesma luz que, aos poucos, começou a pertubar aquele sono em forma de homem.
Ela conseguia perceber o despertar lento e doloroso daquele corpo cansado. Suas mãos agora passavam pelo seu cabelo, acariciavam aquele excesso de manhã que transbordava da cama.
Deitada ao seu lado ela podia ver os olhos se abrindo demoradamente. Uns olhos pretos que, ainda adormecidos, não estavam preparados para o dia. Uns olhos pretos que, ainda cansados, resistiam. Uns olhos pretos que, por mais que lutassem, acordavam.
Ele olhava para ela. Já não dormia mais e olhava para ela, que sorria ainda. Um sorriso largo, amanhecido.
Deitados na cama eles se olhavam como se nunca tivessem estado ali. Ela aproximou o seu corpo do dele, trazendo pra perto o cheiro da noite passada.
Agora ele também sorria, entendia, sabia. Era passada a hora do sono. Tinham que sair dali, retomar a vida que havia ficado trancada pra fora do quarto. Mas por qual caminho? Com que pernas?
Ela estava bem perto do seu rosto e brincava com a sua boca. Sua língua fazia movimentos de carinho, quase inofensivos. Beijava seu rosto, suas mãos. Sentia a vida ficando líquida no meio das pernas. Não controlava mais seus gestos ofegantes.
Ele continuava sorrindo. Já era evidente aquela vontade dos corpos, aquele amanhecer dos sentidos. Aquele instante parado no tempo, pedindo mais e mais e mais.
Os olhos já não tinham mais sono. Agora se olhavam firmes, eram precisos e delicados.
Se encostavam ainda mais, com medo de que qualquer espaço entre eles fosse demais. Colada nele, ela podia sentir os movimentos que denunciavam o desejo. Eram involuntários e faziam crescer não só o corpo, mas também a pressa.
E assim, nesse vai e vem de olhares, mãos e beijos, eles iam se perdendo naquela cama, dentro daquela manhã.
Ele sentia na ponta dos dedos a umidade do corpo dela, um convite. Ela tremia e segurava suas costas sem medo de puxá-lo pra dentro. Um gemido alto e eles já não estavam mais separados. Juntos, grudados, vencendo os primeiros raios de sol daquele dia que seria tão corrido.
Os olhos, vidrados uns nos outros, acompanhavam cada movimento latente, cada encaixe, cada ponto fraco, cada lugar escondido, cada descoberta. Eram dois na forma de um, amarrados por dentro. O corpo de um navegava dentro do corpo do outro. Fechavam os olhos e sentiam, cada vez mais, as respirações arfantes, os quase gritos que, presos, atiçavam o sim.
E ficaram muito tempo assim. O ritmo subindo e descendo pelos pés, pelas pernas, pelas barrigas, pelos ombros. Um ritmo que acelerava. Ele olhava pra ela. Ela olhava pra ele. Eles se tocavam, se beijavam. Ele conseguia ver o rosto dela se transformar. Com as mãos ao redor da sua cintura, ele puxava forte o corpo dela. Era como se quisesse ocupá-la inteira. Morar ali, naquele espaço quente e molhado. Ela sentia aquele olhar lascivo, aquele foco desconcertante. Ela gemia no ouvido dele, mordia, lambia. Como se dissesse que sim, que era assim, que não parasse. E ele não parava. E ela não parava. E não paravam os dois que, juntos, mergulhavam naquele sentir sem fim, onde nada mais existia, a não ser aquele grito que saía daquela cama e invadia aquela manhã.
Exaustos, eles ainda se olhavam. Não tinham mais pressa de escapar. Era tudo inteiro ali: e de mais ninguém.
Devagar, os ares ofegantes foram devolvendo o lugar dos sorrisos. Os olhares cúmplices se acariciavam de perto. O dia voltava a chamar pra fora.
E dentro do quarto aquele cheiro, aquela cor, aqueles olhos.
Dentro do quarto aquela fala engasgada quando não há o que dizer depois do corpo mostrar tudo.
Ela esticou a mão pra fora da cama, trazendo a calcinha que estava no chão desde a noite passada. Ele sorria. Quase pedindo que não, que a esquecesse jogada. Que continuassem. Mas calava. Sabia da vida e dos tempos gritantes. Sentou-se então na cama, deixando à mostra aquele pedaço das suas costas que ela adorava. Antes de se levantar ela apoiou levemente seus braços nos seus ombros. Se inclinou sobre ele, chegou perto da sua nuca e guardou aquele cheiro dentro da memória olfativa do dia.
Já podia ir embora. Pegou a tollha jogada no chão e planejou o banho e as roupas.
Antes de sair do quarto ainda olhou pra trás. Ele já de calça, mas ainda sem camisa. Os braços, nus, desenhados. As mãos percorriam os discos e escolhiam um.
Ela sorria. Já não temia o dia lá fora. Com os cabelos pretos um pouco embaraçados, ela abria a porta do quarto.
Eles sentiam a corrente de ar entrar. Deviam estar fechados ali há muito tempo, mas não tinham certeza.
Com a porta do quarto aberta, ela ainda voltou num rápido movimento e segurou seu rosto entre as mãos.
Foi um beijo longo e corajoso, que saía daquela cama, no meio daquela manhã, rasgando aquele dia.
E a música já tocava enquanto, por fim, ela abandonava aquele quarto: the sea was red and the sky was grey, wondered how tomorrow could ever follow today.